terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A Nova Escola


A Filipa estava demasiado ansiosa para conseguir dormir. Então, levantou-se da cama e foi sentar-se à escrivaninha para retomar o seu diário, já que, àquela hora, não tinha ali ninguém que a ouvisse. Amanhã vai ser o primeiro dia de aulas na escola nova! Setembro chegou num instante. As férias passaram ainda mais depressa do que era costume! Aqui na quinta, as obras no barracão – que vai ser o local de trabalho da minha mãe – estão quase no fim! O pai e o senhor Carlos Amaro ajudaram imenso, claro, senão ainda faltaria muita coisa. Assim foi óptimo, porque não foi preciso ter cá o pedreiro mais dias. Confesso que nunca pensei ver o meu pai a acartar lixo, pedras, madeiras… É incrível como ele se está a adaptar tão bem a tudo isto! Em Lisboa, passava o tempo quase todo sentado no sofá da sala, desde que chegava do trabalho. Às vezes, nem para beber um copo de água queria levantar-se… O certo é que agora já perdeu quase completamente aquele pneu que tinha à volta da barriga e fica bastante melhor assim, claro. O barracão está a ficar impecável! Agora, sem a tralha que por lá havia, parece muito maior! Só lá falta uma arca frigorífica que já foi encomendada. O chão foi revestido de um pavimento lavável. As paredes foram pintadas de branco (por mim e pelo salvador) e o tecto foi pintado pelo Tomás. Substituíram-se as janelas (que estavam praticamente podres) por outras de alumínio anodizado de cor branca. Comprou-se um fogão grande para fazer os doces e uma mesa enorme para trabalhar. Na sala do lado é a despensa, que ficou cheia de prateleiras e um armário de madeira que ocupa toda a parede do fundo e cujas portas a mãe deixou que eu pintasse de verde-escuro. Não é para me gabar, mas ficou bué giro. Se, dantes, me dissessem que eu havia de passar os últimos dias de férias a ajudar nas obras de um barracão, eu diria que nem por sombras, mas a verdade é que estes dias foram precisamente a parte de que mais gostei das minhas férias de verão! Apesar do calor, do pó que engoli, das teias de aranha que limpei, do cheiro das tintas e do verniz, do barulho do martelo, das piadas do Salvador… Ainda bem que o primo Abílio emprestou dinheiro para estas obras! Agora, a minha mãe vai mesmo poder fazer as compotas e conservas para vender! Até já temos um nome para a empresa que ela e o pai criaram: «Quinta de S. Francisco – fruta, doces, conservas, licores». Não é lá muito original, mas tem a ver connosco e não é pindérico. Sinto orgulho nos meus pais, porque estão a dar tudo por tudo para criarem os seus próprios postos de trabalho e poderem ganhar a vida como dantes e, para isso, tanto um como outro mudaram de actividade para outras que eu acho que nem em sonhos eles tinham planeado, antes de o meu pai perder o emprego que tinha em Lisboa. Agora, quando ouço na televisão pessoas a queixarem-se de terem perdido o emprego, a vontade que tenho é de mandar uma mensagem a cada uma, a dizer que não desistam e que tentem agarrar-se a qualquer coisa que possam aproveitar, ainda que pareça pouco ou mesmo absurdo. Sei que, tão cedo, a nossa vida não vai voltar a ser como era, no aspecto material. O meu pai tinha um óptimo ordenado e o da minha mãe, senso inferior, não era nada mau. O que interessa é que mudamos porque tínhamos de mudar e eu começo a achar que foi mesmo para melhor! Depois das obras no barracão, a minha mãe parece outra, cheia de esperança no futuro, até dá ideia de que ficou mais nova! Está mesmo entusiasmada. Já tem um ficheiro no computador com as receitas todas que seleccionou para as compotas e tudo o que vai produzir com os produtos aqui da quinta. Quase todas as receitas foram cedidas pela tia Luísa; as outras foram dadas pela Leontina e algumas já estavam no caderno de receitas que a minha mãe herdou da mãe dela. O único problema que eu consigo imaginar, para já, é que vamos todos engordar com os doces…

In, A Nova Escola

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Pedras Vivas


Era o Guilherme, um dos últimos jovens a integrar o grupo «Pedras Vivas» por só recentemente ter vindo viver, com os pais e a irmã, para a vila de Figueira Branca.
- Não sei se estou a interrompê-lo... - disse o rapaz, em voz baixa.
Com o seu habitual bom humor, o padre Hermínio retorquiu:
- Mas eu não quero que fiques na ignorância e respondo-te: já interrompeste. Mas não faças essa cara que não é grave! - E deu uma gargalhada perante o ar embaraçado do Guilherme.
- Desculpe, é que eu queria falar consigo sobre o grupo...
- Sobre o «Pedras Vivas»?
- Pois...
- O que é que te preocupa?
- Bem, é que eu estou a gramar pertencer ao grupo, sabe, e pus-me a pensar que, com isto da Alcina se ir embora, pode acabar tudo...

In, O Natal na Quinta